Thursday, April 09, 2009

Poemas de A Casa , o Caminho

Tapiès

« Vivre sans vivant,comme mourir sans mort:
écrire nous renvoie à des propositions énigmatiques »

Maurice Blanchot


Para António Ramos Rosa



Continuava a insistir do fundo estreito da queda
Essa mais íngreme voz
Que não terei por certo caído ainda o suficiente
À medida imposta pelo silêncio para a trasladação da palavra ao dizer,
Sempre um melro precede por cada morte mais recuada
A abnegação do seu próprio canto,
Tempo recobrado e agora devolvido às palavras
Como animais despertos e crucificados
À tua única ferida sempre fiel que nada te havia prometido,
Não por uma qualquer fala tua chegarei a reconhecer-te
Nem mesmo em redor da tua voz que ignora o teu primeiro nome,
Não porque não vejas ainda as coisas já todas acontecidas
Deverás presumir que não terão porventura acontecido,
Tudo aconteceu, apenas não adveio,
Tudo aconteceu já até ao último instante,
Tudo aconteceu já até ao último melro
E a vida toda afinal tão-só para poder ouvi-lo
Porque ver crescer a árvore é ofício clandestino do relâmpago;
E são os cães então cegos a regressar do futuro com a ossatura
Fissurada
Dos teus passos perigosamente reclinados
Sobre um espelho surdo-mudo com imagens
Iminentes porém de advento numa consumada anterioridade futura,
Estão os poetas também desmesuradamente atentos
Em agudas intenções de descida;
A uma janela que é futuro em relação ao resto da casa
Riposta a sombra de uma árvore
Faltando-lhe apenas advir o melro
A uma distância de três manhãs consecutivas
Só para te confirmar e desnomear.




*


Tapiès




Sempre mais improvável cada dia
Que sare sobre o olhar essa cicatriz aí abandonada por um mero descuido
Da morte em suas manobras quotidianas de extracção de luz e abismo,
Descias entretanto por noite escura um caminho estreito sem sinalização adequada
De estar a vida ainda em fase terminal de reparação;
Algures já só o som estridente de uns dados a rolar até à exaustão
De suas premeditadas combinatórias,
Sem outra alternativa que não seja participares também tu desse jogo clandestino,
Em vez de dados terias de lançar as mãos
Perante a indiferença altaneira
De teus parceiros,
O deus e também a sua ausência agora em incestuosa cumplicidade
Furiosamente atirando uns contra os outros seus viciados eternos dados,
De um único lance se te exige que obtenhas agora
De cada dado essoutro rosto sempre oculto
Apenas com uma simples trajectória da mão no vazio de um tabuleiro paralelo;
Para sempre mudo se ganhares,
Para sempre silencioso se perderes,
Em ambos os casos
O deserto.



Tapiès

8


Cair de ti
Nunca será exactamente o mesmo
Que cair de outra coisa qualquer,
Muito menos de mim;

Um fruto liberto da árvore,
Um fruto arrancado pelo vento
Ou por mãos ávidas,
Tudo formas díspares
Da queda;

Um dia escolher de onde cair
E sermos devolvidos
À raiz da casa mais isenta de excrecências
Do pensamento,
Escolher depois alguém ímpar de onde cair
À altura de um último olhar trocado
Em silêncio;
Cair de ti
Com essa lhaneza estreme
Do fruto a abandonar a árvore
À chegada pontual
Do amadurecimento;

Entretanto ao deus e ao declive mais pronunciado
Do seu eclipse
Não lhes resta agora senão escolher de onde cair à maior altura
De uma ponte levadiça,ponte altíssima erguida
Por sobre todo um espaço sobejante de areias movediças entre ambos,
Contigo apenas a ampará-los em contraluz com essa tua ferida ancestral
De que te vais esvaindo em silêncio trémulo mas unívoco
Até à hemóstase de um poema
Que sobre si mesmo gira agora
À semelhança de um pião já
Inteiramente imune ao tempo
Dos círculos indigentes e viciosos.




Tapiès

( Para João e Manuela, meus pais )

9

«Um pescador exangue puxando as suas redes com tanto naufrágio dentro»

Todo este tempo nosso que desperdiçamos a ser
Tão inconsequentemente breves
Que já tão pouco vivos nos vamos deste modo arrastando
Até à morte;

Diz-me quanto tempo leva o canto do melro
A sucumbir a um mero chamamento teu,
Diz-me quanto tempo leva a tua brevidade a percorrer
Toda a distância a que estarei agora do silêncio
Da tua casa.



Brancusi

10

Terás chegado talvez tarde ao teu nascimento
E cedo de mais à tua morte,
A vida toda tem sido esse teu esforço de malabarista amador
Para coordenar todos estes movimentos discrepantes de atraso e antecipação;

Começas a não ter posição sobretudo em certos dias
Para estares apenas vivo,
Contorsões incessantes do espírito em busca desse ponto ínfimo
Onde acaso repousar da vida
Por alguns instantes.





Tapiès

11

Andar hoje mais a ti
Do que estar vivo apenas,
Andar hoje a ti
De pensamento inteiramente descalço
Do meu caminho,
Andar hoje a ti
Pela equidistância de um assobio ao ser
E ao nada,
Andar hoje a ti
Contigo de talismã ao peito contra investidas tangenciais
Da morte,
Andar hoje a ti
Mais até que à nudez do teu corpo,
Mais até que à chuva convexa do amor,
Andar hoje a ti
Sem palavras minhas ou tuas
De permeio;

E mal haja então um poema
Andar a ti
Descalço agora até
De deus,
De pão,
De água,
De nada,
Até mesmo dessa rosa
Escondida em segredo um dia por nós dois
Em lugar bem mais seguro
Fora da vida.

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